quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Sonhos - dois pequenos trechos

Sonhar é algo que não me falta e ao mesmo tempo me fascina. Todas as noites encontro os mais terríveis escrúpulos e as mais deliciosas aventuras. Coincidentemente ou não, os dois últimos livros que li/estou lendo contém alguns trechos que falam a respeito de sonhos. Acho que não preciso dizer que foram meus favoritos, não é? Por isso decidi que deveria colocá-los aqui. Não os quero perder de mim tão cedo.

"Antes de concluir este capítulo, fui à janela indagar da noite por que razão os sonhos hão de ser assim tão tênues que se esgarçam ao menor abrir de olhos ou voltar de corpo, e não continuam mais. A noite não me respondeu logo. Estava deliciosamente bela, os morros palejavam de luar e o espaço morria de silêncio. Como eu insistisse, declarou-me que os sonhos já não pertencem à sua jurisdição. Quando eles moravam na ilha que Luciano lhes deu, onde ela tinha o seu palácio, e donde os fazia sair com as suas caras de vária feição, dar-me-ia explicações possíveis. Mas os tempos mudaram tudo. Os sonhos antigos foram aposentados, e os modernos moram no cérebro da pessoa. Estes, ainda que quisessem imitar os outros, não poderiam fazê-lo; a ilha dos sonhos, como a dos amores, como todas as ilhas de todos os mares, são agora objeto da ambição e da rivalidade da Europa e dos Estados Unidos."

 Dom Casmurro - Machado de Assis





"Eu não media a extensão dos sonhos, ou se é um corredor tortuoso. Nem quanto eles voltam semelhantes, parelhos. E nem se concebe quando neles ficamos claro, escuros ou reais.

As imagens se aprofundam, mais que os corpos. Como se fossem bacias e eles, a camada morna de água. E a minha humanidade ou desumanidade queima nos objetos, quando os sonhos também queimam.

E foi assim que vi morrer o amigo Artêncio. Uma moléstia sem nome o atacou e ele morreu sonhando."


Carta aos loucos - Carlos Nejar

terça-feira, 27 de julho de 2010

Água Viva - Clarice Lispector

"A praia estava cheia de vento bom e de uma liberdade. E eu estava só. Sem precisar de ninguém. É difícil porque preciso repartir contigo o que sinto. O mar calmo. Mas à espreita e em suspeita. Como se tal calma não pudesse durar. Algo está sempre por acontecer. O imprevisto improvisado e fatal me fascina. Já entrei contigo em comunicação tão grande que deixei de existir sendo. Você tornou-se um eu. é tão difícil falar e dizer coisas que não podem ser ditas. É tão silencioso. Como traduzir o silêncio do encontro real entre nós dois? Dificílimo contar: olhei para você fixamente por uns instantes. Tais momentos são meus segredos. Houve o que se chama de comunhão perfeita. Eu chamo isto de estado agudo de felicidade. Estou terrivelmente lúcida e parece que alcanço um plano mais alto de humanidade. Ou da desumanidade - o it."

Talvez não entendam porque ando de cima a baixo com um livro de Clarice Lispector; deixe-me explicar, para mim tornou-se um símbolo tão importante quanto uma bíblia é para um cristão. Acho incrível como encontro abrigo em suas palavras sempre, não importa quão estranha, louca e confusa eu julgue minha situação. Esse trecho há tempos eu já havia escrito na parede do meu quarto, busquei-o sabendo que encontraria um pouco de alívio. Encontrei.

domingo, 18 de julho de 2010

O sentido da vida - Ernst Orvil

"O sentido da vida, digo inquieto,
por que nos é desconhecido?

Porque uma vida com sentido
parece-nos intolerável.

Sentido da manhã à
noite, da noite à manhã.

Assim uma vida sem sentido,
diz ela, não é uma vida sem sentido.
"

Amor - Clarice Lispector

"Um pouco cansada, com as compras deformando o novo saco de tricô, Ana subiu no bonde. Depositou o volume no colo e o bonde começou a andar. Recostou-se então no banco procurando conforto, num suspiro de meia satisfação.

Os filhos de Ana eram bons, uma coisa verdadeira e sumarenta. Cresciam, tomavam banho, exigiam para si, malcriados, instantes cada vez mais completos. A cozinha era enfim espaçosa, o fogão enguiçado dava estouros. O calor era forte no apartamento que estavam aos poucos pagando. Mas o vento batendo nas cortinas que ela mesma cortara lembrava-lhe que se quisesse podia parar e enxugar a testa, olhando o calmo horizonte. Como um lavrador. Ela plantara as sementes que tinha na mão, não outras, mas essas apenas. E cresciam árvores. Crescia sua rápida conversa com o cobrador de luz, crescia a água enchendo o tanque, cresciam seus filhos, crescia a mesa com comidas, o marido chegando com os jornais e sorrindo de fome, o canto importuno das empregadas do edifício. Ana dava a tudo, tranqüilamente, sua mão pequena e forte, sua corrente de vida.

Certa hora da tarde era mais perigosa. Certa hora da tarde as árvores que plantara riam dela. Quando nada mais precisava de sua força, inquietava-se. No entanto sentia-se mais sólida do que nunca, seu corpo engrossara um pouco e era de se ver o modo como cortava blusas para os meninos, a grande tesoura dando estalidos na fazenda. Todo o seu desejo vagamente artístico encaminhara-se há muito no sentido de tornar os dias realizados e belos; com o tempo, seu gosto pelo decorativo se desenvolvera e suplantara a íntima desordem. Parecia ter descoberto que tudo era passível de aperfeiçoamento, a cada coisa se emprestaria uma aparência harmoniosa; a vida podia ser feita pela mão do homem.

No fundo, Ana sempre tivera necessidade de sentir a raiz firme das coisas. E isso um lar perplexamente lhe dera. Por caminhos tortos, viera a cair num destino de mulher, com a surpresa de nele caber como se o tivesse inventado. O homem com quem casara era um homem verdadeiro, os filhos que tivera eram filhos verdadeiros. Sua juventude anterior parecia-lhe estranha como uma doença de vida. Dela havia aos poucos emergido para descobrir que também sem a felicidade se vivia: abolindo-a, encontrara uma legião de pessoas, antes invisíveis, que viviam como quem trabalha — com persistência, continuidade, alegria. O que sucedera a Ana antes de ter o lar estava para sempre fora de seu alcance: uma exaltação perturbada que tantas vezes se confundira com felicidade insuportável. Criara em troca algo enfim compreensível, uma vida de adulto. Assim ela o quisera e o escolhera.

Sua precaução reduzia-se a tomar cuidado na hora perigosa da tarde, quando a casa estava vazia sem precisar mais dela, o sol alto, cada membro da família distribuído nas suas funções. Olhando os móveis limpos, seu coração se apertava um pouco em espanto. Mas na sua vida não havia lugar para que sentisse ternura pelo seu espanto — ela o abafava com a mesma habilidade que as lides em casa lhe haviam transmitido. Saía então para fazer compras ou levar objetos para consertar, cuidando do lar e da família à revelia deles. Quando voltasse era o fim da tarde e as crianças vindas do colégio exigiam-na. Assim chegaria a noite, com sua tranqüila vibração. De manhã acordaria aureolada pelos calmos deveres. Encontrava os móveis de novo empoeirados e sujos, como se voltassem arrependidos. Quanto a ela mesma, fazia obscuramente parte das raízes negras e suaves do mundo. E alimentava anonimamente a vida. Estava bom assim. Assim ela o quisera e escolhera.

O bonde vacilava nos trilhos, entrava em ruas largas. Logo um vento mais úmido soprava anunciando, mais que o fim da tarde, o fim da hora instável. Ana respirou profundamente e uma grande aceitação deu a seu rosto um ar de mulher.

O bonde se arrastava, em seguida estacava. Até Humaitá tinha tempo de descansar. Foi então que olhou para o homem parado no ponto.

A diferença entre ele e os outros é que ele estava realmente parado. De pé, suas mãos se mantinham avançadas. Era um cego.

O que havia mais que fizesse Ana se aprumar em desconfiança? Alguma coisa intranqüila estava sucedendo. Então ela viu: o cego mascava chicles... Um homem cego mascava chicles.

Ana ainda teve tempo de pensar por um segundo que os irmãos viriam jantar — o coração batia-lhe violento, espaçado. Inclinada, olhava o cego profundamente, como se olha o que não nos vê. Ele mascava goma na escuridão. Sem sofrimento, com os olhos abertos. O movimento da mastigação fazia-o parecer sorrir e de repente deixar de sorrir, sorrir e deixar de sorrir — como se ele a tivesse insultado, Ana olhava-o. E quem a visse teria a impressão de uma mulher com ódio. Mas continuava a olhá-lo, cada vez mais inclinada — o bonde deu uma arrancada súbita jogando-a desprevenida para trás, o pesado saco de tricô despencou-se do colo, ruiu no chão — Ana deu um grito, o condutor deu ordem de parada antes de saber do que se tratava — o bonde estacou, os passageiros olharam assustados.

Incapaz de se mover para apanhar suas compras, Ana se aprumava pálida. Uma expressão de rosto, há muito não usada, ressurgia-lhe com dificuldade, ainda incerta, incompreensível. O moleque dos jornais ria entregando-lhe o volume. Mas os ovos se haviam quebrado no embrulho de jornal. Gemas amarelas e viscosas pingavam entre os fios da rede. O cego interrompera a mastigação e avançava as mãos inseguras, tentando inutilmente pegar o que acontecia. O embrulho dos ovos foi jogado fora da rede e, entre os sorrisos dos passageiros e o sinal do condutor, o bonde deu a nova arrancada de partida.

Poucos instantes depois já não a olhavam mais. O bonde se sacudia nos trilhos e o cego mascando goma ficara atrás para sempre. Mas o mal estava feito.

A rede de tricô era áspera entre os dedos, não íntima como quando a tricotara. A rede perdera o sentido e estar num bonde era um fio partido; não sabia o que fazer com as compras no colo. E como uma estranha música, o mundo recomeçava ao redor. O mal estava feito. Por quê? Teria esquecido de que havia cegos? A piedade a sufocava, Ana respirava pesadamente. Mesmo as coisas que existiam antes do acontecimento estavam agora de sobreaviso, tinham um ar mais hostil, perecível... O mundo se tornara de novo um mal-estar. Vários anos ruíam, as gemas amarelas escorriam. Expulsa de seus próprios dias, parecia-lhe que as pessoas da rua eram periclitantes, que se mantinham por um mínimo equilíbrio à tona da escuridão — e por um momento a falta de sentido deixava-as tão livres que elas não sabiam para onde ir. Perceber uma ausência de lei foi tão súbito que Ana se agarrou ao banco da frente, como se pudesse cair do bonde, como se as coisas pudessem ser revertidas com a mesma calma com que não o eram.

O que chamava de crise viera afinal. E sua marca era o prazer intenso com que olhava agora as coisas, sofrendo espantada. O calor se tornara mais abafado, tudo tinha ganho uma força e vozes mais altas. Na Rua Voluntários da Pátria parecia prestes a rebentar uma revolução, as grades dos esgotos estavam secas, o ar empoeirado. Um cego mascando chicles mergulhara o mundo em escura sofreguidão. Em cada pessoa forte havia a ausência de piedade pelo cego e as pessoas assustavam-na com o vigor que possuíam. Junto dela havia uma senhora de azul, com um rosto. Desviou o olhar, depressa. Na calçada, uma mulher deu um empurrão no filho! Dois namorados entrelaçavam os dedos sorrindo... E o cego? Ana caíra numa bondade extremamente dolorosa.

Ela apaziguara tão bem a vida, cuidara tanto para que esta não explodisse. Mantinha tudo em serena compreensão, separava uma pessoa das outras, as roupas eram claramente feitas para serem usadas e podia-se escolher pelo jornal o filme da noite - tudo feito de modo a que um dia se seguisse ao outro. E um cego mascando goma despedaçava tudo isso. E através da piedade aparecia a Ana uma vida cheia de náusea doce, até a boca.

Só então percebeu que há muito passara do seu ponto de descida. Na fraqueza em que estava, tudo a atingia com um susto; desceu do bonde com pernas débeis, olhou em torno de si, segurando a rede suja de ovo. Por um momento não conseguia orientar-se. Parecia ter saltado no meio da noite.

Era uma rua comprida, com muros altos, amarelos. Seu coração batia de medo, ela procurava inutilmente reconhecer os arredores, enquanto a vida que descobrira continuava a pulsar e um vento mais morno e mais misterioso rodeava-lhe o rosto. Ficou parada olhando o muro. Enfim pôde localizar-se. Andando um pouco mais ao longo de uma sebe, atravessou os portões do Jardim Botânico.

Andava pesadamente pela alameda central, entre os coqueiros. Não havia ninguém no Jardim. Depositou os embrulhos na terra, sentou-se no banco de um atalho e ali ficou muito tempo.

A vastidão parecia acalmá-la, o silêncio regulava sua respiração. Ela adormecia dentro de si.

De longe via a aléia onde a tarde era clara e redonda. Mas a penumbra dos ramos cobria o atalho.

Ao seu redor havia ruídos serenos, cheiro de árvores, pequenas surpresas entre os cipós. Todo o Jardim triturado pelos instantes já mais apressados da tarde. De onde vinha o meio sonho pelo qual estava rodeada? Como por um zunido de abelhas e aves. Tudo era estranho, suave demais, grande demais.

Um movimento leve e íntimo a sobressaltou — voltou-se rápida. Nada parecia se ter movido. Mas na aléia central estava imóvel um poderoso gato. Seus pêlos eram macios. Em novo andar silencioso, desapareceu.

Inquieta, olhou em torno. Os ramos se balançavam, as sombras vacilavam no chão. Um pardal ciscava na terra. E de repente, com mal-estar, pareceu-lhe ter caído numa emboscada. Fazia-se no Jardim um trabalho secreto do qual ela começava a se aperceber.

Nas árvores as frutas eram pretas, doces como mel. Havia no chão caroços secos cheios de circunvoluções, como pequenos cérebros apodrecidos. O banco estava manchado de sucos roxos. Com suavidade intensa rumorejavam as águas. No tronco da árvore pregavam-se as luxuosas patas de uma aranha. A crueza do mundo era tranqüila. O assassinato era profundo. E a morte não era o que pensávamos.

Ao mesmo tempo que imaginário — era um mundo de se comer com os dentes, um mundo de volumosas dálias e tulipas. Os troncos eram percorridos por parasitas folhudas, o abraço era macio, colado. Como a repulsa que precedesse uma entrega — era fascinante, a mulher tinha nojo, e era fascinante.

As árvores estavam carregadas, o mundo era tão rico que apodrecia. Quando Ana pensou que havia crianças e homens grandes com fome, a náusea subiu-lhe à garganta, como se ela estivesse grávida e abandonada. A moral do Jardim era outra. Agora que o cego a guiara até ele, estremecia nos primeiros passos de um mundo faiscante, sombrio, onde vitórias-régias boiavam monstruosas. As pequenas flores espalhadas na relva não lhe pareciam amarelas ou rosadas, mas cor de mau ouro e escarlates. A decomposição era profunda, perfumada... Mas todas as pesadas coisas, ela via com a cabeça rodeada por um enxame de insetos enviados pela vida mais fina do mundo. A brisa se insinuava entre as flores. Ana mais adivinhava que sentia o seu cheiro adocicado... O Jardim era tão bonito que ela teve medo do Inferno.

Era quase noite agora e tudo parecia cheio, pesado, um esquilo voou na sombra. Sob os pés a terra estava fofa, Ana aspirava-a com delícia. Era fascinante, e ela sentia nojo.

Mas quando se lembrou das crianças, diante das quais se tornara culpada, ergueu-se com uma exclamação de dor. Agarrou o embrulho, avançou pelo atalho obscuro, atingiu a alameda. Quase corria — e via o Jardim em torno de si, com sua impersonalidade soberba. Sacudiu os portões fechados, sacudia-os segurando a madeira áspera. O vigia apareceu espantado de não a ter visto.

Enquanto não chegou à porta do edifício, parecia à beira de um desastre. Correu com a rede até o elevador, sua alma batia-lhe no peito — o que sucedia? A piedade pelo cego era tão violenta como uma ânsia, mas o mundo lhe parecia seu, sujo, perecível, seu. Abriu a porta de casa. A sala era grande, quadrada, as maçanetas brilhavam limpas, os vidros da janela brilhavam, a lâmpada brilhava — que nova terra era essa? E por um instante a vida sadia que levara até agora pareceu-lhe um modo moralmente louco de viver. O menino que se aproximou correndo era um ser de pernas compridas e rosto igual ao seu, que corria e a abraçava. Apertou-o com força, com espanto. Protegia-se tremula. Porque a vida era periclitante. Ela amava o mundo, amava o que fora criado — amava com nojo. Do mesmo modo como sempre fora fascinada pelas ostras, com aquele vago sentimento de asco que a aproximação da verdade lhe provocava, avisando-a. Abraçou o filho, quase a ponto de machucá-lo. Como se soubesse de um mal — o cego ou o belo Jardim Botânico? — agarrava-se a ele, a quem queria acima de tudo. Fora atingida pelo demônio da fé. A vida é horrível, disse-lhe baixo, faminta. O que faria se seguisse o chamado do cego? Iria sozinha... Havia lugares pobres e ricos que precisavam dela. Ela precisava deles... Tenho medo, disse. Sentia as costelas delicadas da criança entre os braços, ouviu o seu choro assustado. Mamãe, chamou o menino. Afastou-o, olhou aquele rosto, seu coração crispou-se. Não deixe mamãe te esquecer, disse-lhe. A criança mal sentiu o abraço se afrouxar, escapou e correu até a porta do quarto, de onde olhou-a mais segura. Era o pior olhar que jamais recebera. Q sangue subiu-lhe ao rosto, esquentando-o.

Deixou-se cair numa cadeira com os dedos ainda presos na rede. De que tinha vergonha?

Não havia como fugir. Os dias que ela forjara haviam-se rompido na crosta e a água escapava. Estava diante da ostra. E não havia como não olhá-la. De que tinha vergonha? É que já não era mais piedade, não era só piedade: seu coração se enchera com a pior vontade de viver.

Já não sabia se estava do lado do cego ou das espessas plantas. O homem pouco a pouco se distanciara e em tortura ela parecia ter passado para o lados que lhe haviam ferido os olhos. O Jardim Botânico, tranqüilo e alto, lhe revelava. Com horror descobria que pertencia à parte forte do mundo — e que nome se deveria dar a sua misericórdia violenta? Seria obrigada a beijar um leproso, pois nunca seria apenas sua irmã. Um cego me levou ao pior de mim mesma, pensou espantada. Sentia-se banida porque nenhum pobre beberia água nas suas mãos ardentes. Ah! era mais fácil ser um santo que uma pessoa! Por Deus, pois não fora verdadeira a piedade que sondara no seu coração as águas mais profundas? Mas era uma piedade de leão.

Humilhada, sabia que o cego preferiria um amor mais pobre. E, estremecendo, também sabia por quê. A vida do Jardim Botânico chamava-a como um lobisomem é chamado pelo luar. Oh! mas ela amava o cego! pensou com os olhos molhados. No entanto não era com este sentimento que se iria a uma igreja. Estou com medo, disse sozinha na sala. Levantou-se e foi para a cozinha ajudar a empregada a preparar o jantar.

Mas a vida arrepiava-a, como um frio. Ouvia o sino da escola, longe e constante. O pequeno horror da poeira ligando em fios a parte inferior do fogão, onde descobriu a pequena aranha. Carregando a jarra para mudar a água - havia o horror da flor se entregando lânguida e asquerosa às suas mãos. O mesmo trabalho secreto se fazia ali na cozinha. Perto da lata de lixo, esmagou com o pé a formiga. O pequeno assassinato da formiga. O mínimo corpo tremia. As gotas d'água caíam na água parada do tanque. Os besouros de verão. O horror dos besouros inexpressivos. Ao redor havia uma vida silenciosa, lenta, insistente. Horror, horror. Andava de um lado para outro na cozinha, cortando os bifes, mexendo o creme. Em torno da cabeça, em ronda, em torno da luz, os mosquitos de uma noite cálida. Uma noite em que a piedade era tão crua como o amor ruim. Entre os dois seios escorria o suor. A fé a quebrantava, o calor do forno ardia nos seus olhos.

Depois o marido veio, vieram os irmãos e suas mulheres, vieram os filhos dos irmãos.

Jantaram com as janelas todas abertas, no nono andar. Um avião estremecia, ameaçando no calor do céu. Apesar de ter usado poucos ovos, o jantar estava bom. Também suas crianças ficaram acordadas, brincando no tapete com as outras. Era verão, seria inútil obrigá-las a dormir. Ana estava um pouco pálida e ria suavemente com os outros. Depois do jantar, enfim, a primeira brisa mais fresca entrou pelas janelas. Eles rodeavam a mesa, a família. Cansados do dia, felizes em não discordar, tão dispostos a não ver defeitos. Riam-se de tudo, com o coração bom e humano. As crianças cresciam admiravelmente em torno deles. E como a uma borboleta, Ana prendeu o instante entre os dedos antes que ele nunca mais fosse seu.

Depois, quando todos foram embora e as crianças já estavam deitadas, ela era uma mulher bruta que olhava pela janela. A cidade estava adormecida e quente. O que o cego desencadeara caberia nos seus dias? Quantos anos levaria até envelhecer de novo? Qualquer movimento seu e pisaria numa das crianças. Mas com uma maldade de amante, parecia aceitar que da flor saísse o mosquito, que as vitórias-régias boiassem no escuro do lago. O cego pendia entre os frutos do Jardim Botânico.

Se fora um estouro do fogão, o fogo já teria pegado em toda a casa! pensou correndo para a cozinha e deparando com o seu marido diante do café derramado.

— O que foi?! gritou vibrando toda.

Ele se assustou com o medo da mulher. E de repente riu entendendo:

— Não foi nada, disse, sou um desajeitado. Ele parecia cansado, com olheiras.

Mas diante do estranho rosto de Ana, espiou-a com maior atenção. Depois atraiu-a a si, em rápido afago.

— Não quero que lhe aconteça nada, nunca! disse ela.

— Deixe que pelo menos me aconteça o fogão dar um estouro, respondeu ele sorrindo.

Ela continuou sem força nos seus braços. Hoje de tarde alguma coisa tranqüila se rebentara, e na casa toda havia um tom humorístico, triste. É hora de dormir, disse ele, é tarde. Num gesto que não era seu, mas que pareceu natural, segurou a mão da mulher, levando-a consigo sem olhar para trás, afastando-a do perigo de viver.

Acabara-se a vertigem de bondade.

E, se atravessara o amor e o seu inferno, penteava-se agora diante do espelho, por um instante sem nenhum mundo no coração. Antes de se deitar, como se apagasse uma vela, soprou a pequena flama do dia."


Li esse conto umas mil vezes, esperando encontrar a minha parte favorita, um trecho que mexesse comigo, a parte exata que faz com que as lágrimas rolem confusas em meu rosto. Só depois pude perceber: não há. Cada trecho precisa um do outro para se completar e tornar-se essa obra, por isso tive que colocá-lo todinho aqui. Clarice Lispector é minha escritora favorita. Por quê? Simplesmente pois ela me faz sentir. Sentir... penso que é para isso que vivemos, a causa última. Sempre buscamos sentir, preste atenção. Desejo de comer pizza: sentir o sabor. Desejo de estar com alguém ao seu lado: sentir a presença. Clarice Lispector me faz sentir vida. É confuso, mas na maioria das coisas escritas por ela que eu já li, sinto como se estivesse desvendando um pedacinho perdido de mim. Para mim, "Amor" é um dos seus melhores contos. E, mais uma vez, não há uma explicação exata para isso. Eu preciso de uma? Me faz sentir coisas que não sei explicar com palavras, por isso nem vou tentar. É bonito demais, e isso me basta.

sexta-feira, 16 de julho de 2010

Carta de um Louco - Guy de Maupassant

" [...]
Eis a história, longa e exata, do mal singular da minha alma.
Eu vivia como todo o mundo, olhando a vida com os olhos abertos e cegos do homem, sem me espantar e sem compreender. Vivia como vivem os animais, como vivemos todos, cumprindo todas as funções da existência, examinando e crendo ver, crendo saber, crendo conhecer o que me rodeia, quando, um dia, me dei conta de que tudo é falso.
Foi uma frase de Montesquieu que iluminou bruscamente o meu pensamento. Ei-la: 'Um orgão a mais ou a menos na nossa máquina far-nos-ia uma outra inteligência.'
...Enfim, todas as leis estabelecidas sobre o fato da nossa máquina ser de uma certa maneira, seriam diferentes se a nossa máquina não fosse desta maneira.
Refleti sobre isto durante meses, e meses, e meses, e, a pouco e pouco, uma estranha claridade entrou em mim, e essa claridade fez em mim a noite.
Com efeito, - os nossos orgãos são os únicos intermediários entre o mundo exterior e nós. Quer dizer que o ser interior, que constitui o eu, se encontra em contato, por meio de uns quaisquer filamentos nervosos, com o ser exterior que constitui o mundo.
Ora, não só esse ser exterior nos escapa pelas suas proporções, a sua duração, as suas propriedades inumeráveis e impenetráveis, as suas origens, o seu porvir ou os seus fins, as suas formas longínquas e as suas manifestações infinitas, como ainda os nossos orgãos não nos fornecem, sobre a sua parcela que podemos conhecer, senão informações tão incertas, quão pouco numerosas.
Incertas, porque são unicamente as propriedades dos nossos orgãos que determinam para nós as propriedades aparentes da matéria.
Pouco numerosas, porque, não sendo os nossos sentidos mais que cinco, o campo das suas investigações e a natureza das suas revelações encontram-se bem restringidas.
Explico-me. - O olho indica-nos as dimensões, as formas e as cores. Ele engana-nos sobre esses três pontos.
Ele não nos pode revelar senão os objetos e os seres de dimensão média em proporção com a estatura humana, o que nos levou a aplicar a palavra grande a certas coisas e a palavra pequeno a certas outras, unicamente porque a sua fraqueza não lhe permite conhecer aquilo que é demasiado vasto ou demasiado pequeno para ele. Donde resulta que ele não sabe e não vê quase nada, que o universo quase inteiro lhe permanece oculto, a estrela que habita o espaço e o animálculo que habita a gota de água.
Mesmo se ele tivesse cem milhões de vezes a sua potência normal, se percebesse no ar que respiramos todas as raças de seres invisíveis, assim como os habitantes de planetas vizinhos, existiriam ainda números infinitos de raças de animais menores e mundos de tal maneira longínquos que não os alcançaria.
Logo, todas as nossas ideias de proporção são falsas, pois que não há limite possível na grandeza, nem na pequenez.
A nossa apreciação das dimensões e das formas não tem qualquer valor absoluto, sendo determinada unicamente pela potência de um orgão e por uma constante comparação com nós mesmos.
[...]
Passemos à cor.
A cor existe, porque o nosso olho é constituído de tal sorte que transmite ao cérebro, sob a forma de cor, os diversos modos em que os corpos absorvem e decompõem, segundo a sua constituição química, os raios luminosos que os atingem.
Todas as proporções dessa absorção e dessa decomposição constituem os cambiantes.
Logo, esse orgão impõe ao espírito a sua maneira de ver, ou melhor, o seu modo arbitrário de verificar as dimensões e de apreciar as relações entre a luz e a matéria.
Examinemos o ouvido.
Ainda mais que com o olho, somos os joguetes e os papalvos deste orgão fantasista.
Dois corpos chocam produzindo um certo abalo da atmosfera. Esse movimento faz estremecer no nosso ouvido uma certa pequena pele que torna imediatamente em ruído aquilo que, na realidade, não é mais que uma vibração.
A natureza é muda. Mas o tímpano possui a propriedade miraculosa de nos transmitir sob a forma de sons, e de sons diversos consoantes o número de vibrações, todos os frémitos das ondas invisíveis do espaço.
Essa metamorfose realizada pelo nervo auditivo no curto trajecto do ouvido ao cérebro permitiu-nos criar uma arte estranha, a música, a mais poética e a mais precisa das artes, vaga como um sonho e exata como a álgebra.
Que dizer do gosto e do olfato? Conheceríamos nós os perfumes e a qualidade dos alimentos sem as propriedades extravagantes do nosso nariz e do nosso paladar?
No entanto, a humanidade poderia existir sem o ouvido, sem o gosto e sem o olfato, quer dizer, sem qualquer noção do ruído, do sabor e do odor.
Logo, se tivéssemos alguns orgãos a menos, ignoraríamos coisas admiráveis e singulares, mas, se tivéssemos alguns orgãos a mais, descobriríamos, à nossa volta, uma infinidade de outras coisas, a respeito das quais jamais suspeitaremos da falta de meio para notá-las.
Logo, enganamo-nos ao julgar o Conhecido, e estamos rodeados pelo Desconhecido inexplorado.
Logo, tudo é incerto e apreciável de maneiras diferentes.
Tudo é falso, tudo é possível, tudo é duvidoso.
[...]
Dois e dois não devem mais ser quatro para lá da nossa atmosfera.
[...]
Depois de me ter convencido que tudo o que os meus sentidos me revelam não existe senão para mim na maneira em que o percebo, e seria totalmente diferente para um outro ser de outro modo organizado, depois de ter concluído que uma humanidade diversamente feita teria sobre o mundo, sobre a vida, sobre tudo, ideias absolutamente opostas às nossas, pois, o acordo das crenças não resulta senão da similitude dos orgãos humanos, e as divergências de opinião não provêm senão de ligeiras diferenças de funcionamento dos nossos filamentos nervosos, fiz um esforço de pensamento sobre-humano para suspeitar do impenetrável que me rodeia.
Tornei-me eu um louco?
Disse a mim mesmo: estou cercado por coisas desconhecidas. Supus o homem sem ouvidos e suspeitando do som, como nós suspeitamos tanto de mistérios ocultos, o homem notando os fenómenos acústicos, de que não poderá determinar nem a natureza, nem a proveniência. E ganhei medo de tudo o que me rodeia, medo do ar, medo da noite. A partir do momento em que não podemos conhecer quase nada, e a partir do momento em que tudo é sem limites, o que é o resto? O vazio não é? O que é que há no aparente vazio?"


Já li e reli esse conto diversas e diversas vezes e cada vez que o leio acrescento algo a mais, uma percepção diferente. Lembro-me bem da segunda vez que o li. Estávamos sentados desconfortavelmente sobre um pé de umbu, eu, meus primos e meu irmão caçula. Resolvi, então, que leria em voz alta para eles. Meu intuito era de que eles pudessem sentir exatamente da maneira como me senti quando o li pela primeira vez – um estranho poço vazio, ou melhor, cheio; cheio de dúvidas e irritações. Entendam, eu não queria causar desconforto, só queria que eles pudessem me ajudar a refletir. No decorrer da leitura, tudo a minha volta ia tomando outras formas. Eu me questionava: Como posso ter certeza absoluta de que existo? Como posso provar de que eles escutam minhas palavras e me compreendem? Poderia tudo isso ser um sonho? Mais tarde, descemos e fomos caminhar pela estrada de terra. Meu objetivo tinha se realizado: conversávamos a respeito da vida, ríscavamos o chão com galhos de árvores, enchendo-o de frases loucas e sem sentido, nos sentíamos verdadeiros filósofos mirins. Já na casa, não me recordo se foi no mesmo dia ou não, deitei ao lado de meu pai que dormia. Minha cabeça encheu-se de perguntas, meu corpo foi inteiramente tomado pela angústia e tive medo. Tive medo de tudo aquilo ser irreal, de estar sozinha e não ao lado de meu pai que tanto amo, e pensava que Guy de Maupassant devia ter cumprido seu objetivo: levar todos os seus leitores à loucura. Abracei meu pai com força, ele estava ali do meu lado, não era um sonho. Aos poucos as coisas voltaram a fazer sentido, mas ainda quando leio esse conto, sou tomada de uma inexplicável angústia. Acho que é exatamente por isso que gosto dele.

quinta-feira, 15 de julho de 2010

A Lentidão - Milan Kundera (parte II)

"Será que aquilo que Madame de T. acaba de viver com ele faz parte da rotina dela ou foi uma aventura rara, talvez única? Seu coração teria sido tocado ou continua intacto? [...] Será que a ausência do cavalheiro irá torná-la nostálgica ou a deixará indiferente?
E quanto a ele: quando, de manhã, o marquês zombou dele, ele respondeu espirituosamente, conseguindo manter-se o senhor da situação. Mas como teria verdadeiramente se sentido? E como se sentirá no momento em que deixar o castelo? Em que pensará? No prazer que sentiu ou em sua reputação de rapazinho ridículo? Sentir-se-á vencedor ou vencido? Feliz ou infeliz?
Em outras palavras: será que podemos viver no prazer e para o prazes e sermos felizes? O ideal do hedonismo é realizável? Existe essa esperança? Será que existe ao menos um tênue vislumbre dessa esperança?"

Esse trecho me fez questionar aspectos que antes estavam muito claros na minha cabeça. Eu costumava pensar: Temos que fazer só o que nos dá prazer e assim alcançaremos a felicidade. Será mesmo? Aí me lembro de uma conversa que tive há dias atrás com duas amigas: quando temos que pensar nas consequências e quando devemos agir inconscientemente, somente em busca do prazer maior? 

A Lentidão - Milan Kundera

"Ao voltar para o castelo com o cavalheiro, Madame T. simula uma descida para o nada, sabendo muito bem que no último momento terá todo o poder de inverter a situação e prolongar o encontro. Para tanto, bastará uma frase, uma daquelas fórmulas de que a arte da conversa dispõe às dezenas. Mas, por uma espécie de conspiração inesperada, por uma imprevisível falta de inspiração, ela é incapaz de encontrar uma que seja. É como um ator que tivesse subitamente esquecido seu texto. Pois, na verdade, é preciso conhecer o texto; não é como hoje em dia, em que uma moça pode dizer: você quer, eu também quero, não vamos perder tempo! Para eles, essa franqueza mantém-se por trás de uma barreira que não pode ser tranporta apesar de todas as suas convicções libertinas. Se nenhuma ideia ocorre a tempo nem a um nem a outro, se não encontram nenhum pretexto para continuar seu passeio, serão obrigados, pela simples lógica de seu silêncio, a voltar para o castelo e ali se despedirem. Quanto mais os dois percebem a urgência de encontrar um pretexto para não ir adiante e que possa ser expresso em voz alta, mais suas bocas parecem estar costuradas: todas as frases que poderiam ser de alguma ajuda se escondem deles que, desesperadamente, pedem socorro. É a razão por que, ao chegar perto da porta do castelo, "por um instinto mútuo, nossos passos tornavam-se mais lentos""

Gosto de Kundera por ele ser um escritor que passa todos os sentimenos, negações e absurdos desejos humanos sem o menor pudor. Isso fica claro em  "A Insustentável Leveza do Ser", onde ele cita o antagonismo que existe entre Deus e a merda, e o modo como negamos um para o outro a existência de algo que todos temos em comum. Eu poderia escolher esse trecho se quisesse ser polêmica ou escrever um enorme artigo de opinião, mas não é isso que desejo agora. Evidentemente, "A Lentidão" não é o mais famoso livro de Milan Kundera e o trecho que resolvi colocar também não, porém há algo nele que me chamou atenção - o fato de eu já ter experimentado a mesma sensação que o cavalheiro e Madame T.  experimentam nessa cena. Gosto tanto da simplicidade que Kundera coloca esse sentimento, conseguindo aprofundar toda a angústia dos dois personagens sem a necessidade de escrever os pensamentos de cada um em longas e longas explicações (infelizmente seria isso que eu faria) e gosto da maneira em que se segue todos os acontecimentos posteriores, mas não vou colocá-los aqui por motivos óbvios de espaço e paciência. Acho que é só o que tenho pra dizer. PS: Foi graças a Milan Kundera que criei o título desse blog, foi com ele que descobri a palavra "risíveis" :D

Libelulando

Diversas vezes, ao ler algo que me interessa, acabo me apaixonando por algumas frases ou trechos. A maioria das vezes me identifico de alguma maneira; seja porque me lembram alguma experiência de vida ou porque encontro neles meus próprios pensamentos expressos; o caso é que, no final, eles sempre modificam e transformam algo dentro de mim, ou me permitem enxergar o que eu já via mas não podia compreender. Muitos desses trechos acabam esquecidos, outros perdidos em um pedaço solto de papel, por isso, decidi que já era hora de organizá-los de alguma maneira. Fiz esse blog com o único intuito de não me permitir esquecê-los e de, talvez, passar minhas impressões a respeito de leituras que marcaram minha vida. Espero que, no fim, o resultado seja interessante.