sexta-feira, 16 de julho de 2010

Carta de um Louco - Guy de Maupassant

" [...]
Eis a história, longa e exata, do mal singular da minha alma.
Eu vivia como todo o mundo, olhando a vida com os olhos abertos e cegos do homem, sem me espantar e sem compreender. Vivia como vivem os animais, como vivemos todos, cumprindo todas as funções da existência, examinando e crendo ver, crendo saber, crendo conhecer o que me rodeia, quando, um dia, me dei conta de que tudo é falso.
Foi uma frase de Montesquieu que iluminou bruscamente o meu pensamento. Ei-la: 'Um orgão a mais ou a menos na nossa máquina far-nos-ia uma outra inteligência.'
...Enfim, todas as leis estabelecidas sobre o fato da nossa máquina ser de uma certa maneira, seriam diferentes se a nossa máquina não fosse desta maneira.
Refleti sobre isto durante meses, e meses, e meses, e, a pouco e pouco, uma estranha claridade entrou em mim, e essa claridade fez em mim a noite.
Com efeito, - os nossos orgãos são os únicos intermediários entre o mundo exterior e nós. Quer dizer que o ser interior, que constitui o eu, se encontra em contato, por meio de uns quaisquer filamentos nervosos, com o ser exterior que constitui o mundo.
Ora, não só esse ser exterior nos escapa pelas suas proporções, a sua duração, as suas propriedades inumeráveis e impenetráveis, as suas origens, o seu porvir ou os seus fins, as suas formas longínquas e as suas manifestações infinitas, como ainda os nossos orgãos não nos fornecem, sobre a sua parcela que podemos conhecer, senão informações tão incertas, quão pouco numerosas.
Incertas, porque são unicamente as propriedades dos nossos orgãos que determinam para nós as propriedades aparentes da matéria.
Pouco numerosas, porque, não sendo os nossos sentidos mais que cinco, o campo das suas investigações e a natureza das suas revelações encontram-se bem restringidas.
Explico-me. - O olho indica-nos as dimensões, as formas e as cores. Ele engana-nos sobre esses três pontos.
Ele não nos pode revelar senão os objetos e os seres de dimensão média em proporção com a estatura humana, o que nos levou a aplicar a palavra grande a certas coisas e a palavra pequeno a certas outras, unicamente porque a sua fraqueza não lhe permite conhecer aquilo que é demasiado vasto ou demasiado pequeno para ele. Donde resulta que ele não sabe e não vê quase nada, que o universo quase inteiro lhe permanece oculto, a estrela que habita o espaço e o animálculo que habita a gota de água.
Mesmo se ele tivesse cem milhões de vezes a sua potência normal, se percebesse no ar que respiramos todas as raças de seres invisíveis, assim como os habitantes de planetas vizinhos, existiriam ainda números infinitos de raças de animais menores e mundos de tal maneira longínquos que não os alcançaria.
Logo, todas as nossas ideias de proporção são falsas, pois que não há limite possível na grandeza, nem na pequenez.
A nossa apreciação das dimensões e das formas não tem qualquer valor absoluto, sendo determinada unicamente pela potência de um orgão e por uma constante comparação com nós mesmos.
[...]
Passemos à cor.
A cor existe, porque o nosso olho é constituído de tal sorte que transmite ao cérebro, sob a forma de cor, os diversos modos em que os corpos absorvem e decompõem, segundo a sua constituição química, os raios luminosos que os atingem.
Todas as proporções dessa absorção e dessa decomposição constituem os cambiantes.
Logo, esse orgão impõe ao espírito a sua maneira de ver, ou melhor, o seu modo arbitrário de verificar as dimensões e de apreciar as relações entre a luz e a matéria.
Examinemos o ouvido.
Ainda mais que com o olho, somos os joguetes e os papalvos deste orgão fantasista.
Dois corpos chocam produzindo um certo abalo da atmosfera. Esse movimento faz estremecer no nosso ouvido uma certa pequena pele que torna imediatamente em ruído aquilo que, na realidade, não é mais que uma vibração.
A natureza é muda. Mas o tímpano possui a propriedade miraculosa de nos transmitir sob a forma de sons, e de sons diversos consoantes o número de vibrações, todos os frémitos das ondas invisíveis do espaço.
Essa metamorfose realizada pelo nervo auditivo no curto trajecto do ouvido ao cérebro permitiu-nos criar uma arte estranha, a música, a mais poética e a mais precisa das artes, vaga como um sonho e exata como a álgebra.
Que dizer do gosto e do olfato? Conheceríamos nós os perfumes e a qualidade dos alimentos sem as propriedades extravagantes do nosso nariz e do nosso paladar?
No entanto, a humanidade poderia existir sem o ouvido, sem o gosto e sem o olfato, quer dizer, sem qualquer noção do ruído, do sabor e do odor.
Logo, se tivéssemos alguns orgãos a menos, ignoraríamos coisas admiráveis e singulares, mas, se tivéssemos alguns orgãos a mais, descobriríamos, à nossa volta, uma infinidade de outras coisas, a respeito das quais jamais suspeitaremos da falta de meio para notá-las.
Logo, enganamo-nos ao julgar o Conhecido, e estamos rodeados pelo Desconhecido inexplorado.
Logo, tudo é incerto e apreciável de maneiras diferentes.
Tudo é falso, tudo é possível, tudo é duvidoso.
[...]
Dois e dois não devem mais ser quatro para lá da nossa atmosfera.
[...]
Depois de me ter convencido que tudo o que os meus sentidos me revelam não existe senão para mim na maneira em que o percebo, e seria totalmente diferente para um outro ser de outro modo organizado, depois de ter concluído que uma humanidade diversamente feita teria sobre o mundo, sobre a vida, sobre tudo, ideias absolutamente opostas às nossas, pois, o acordo das crenças não resulta senão da similitude dos orgãos humanos, e as divergências de opinião não provêm senão de ligeiras diferenças de funcionamento dos nossos filamentos nervosos, fiz um esforço de pensamento sobre-humano para suspeitar do impenetrável que me rodeia.
Tornei-me eu um louco?
Disse a mim mesmo: estou cercado por coisas desconhecidas. Supus o homem sem ouvidos e suspeitando do som, como nós suspeitamos tanto de mistérios ocultos, o homem notando os fenómenos acústicos, de que não poderá determinar nem a natureza, nem a proveniência. E ganhei medo de tudo o que me rodeia, medo do ar, medo da noite. A partir do momento em que não podemos conhecer quase nada, e a partir do momento em que tudo é sem limites, o que é o resto? O vazio não é? O que é que há no aparente vazio?"


Já li e reli esse conto diversas e diversas vezes e cada vez que o leio acrescento algo a mais, uma percepção diferente. Lembro-me bem da segunda vez que o li. Estávamos sentados desconfortavelmente sobre um pé de umbu, eu, meus primos e meu irmão caçula. Resolvi, então, que leria em voz alta para eles. Meu intuito era de que eles pudessem sentir exatamente da maneira como me senti quando o li pela primeira vez – um estranho poço vazio, ou melhor, cheio; cheio de dúvidas e irritações. Entendam, eu não queria causar desconforto, só queria que eles pudessem me ajudar a refletir. No decorrer da leitura, tudo a minha volta ia tomando outras formas. Eu me questionava: Como posso ter certeza absoluta de que existo? Como posso provar de que eles escutam minhas palavras e me compreendem? Poderia tudo isso ser um sonho? Mais tarde, descemos e fomos caminhar pela estrada de terra. Meu objetivo tinha se realizado: conversávamos a respeito da vida, ríscavamos o chão com galhos de árvores, enchendo-o de frases loucas e sem sentido, nos sentíamos verdadeiros filósofos mirins. Já na casa, não me recordo se foi no mesmo dia ou não, deitei ao lado de meu pai que dormia. Minha cabeça encheu-se de perguntas, meu corpo foi inteiramente tomado pela angústia e tive medo. Tive medo de tudo aquilo ser irreal, de estar sozinha e não ao lado de meu pai que tanto amo, e pensava que Guy de Maupassant devia ter cumprido seu objetivo: levar todos os seus leitores à loucura. Abracei meu pai com força, ele estava ali do meu lado, não era um sonho. Aos poucos as coisas voltaram a fazer sentido, mas ainda quando leio esse conto, sou tomada de uma inexplicável angústia. Acho que é exatamente por isso que gosto dele.

5 comentários:

  1. fazia tempo que eu não lia algo que me fizesse pensar e refletir dessa maneira. gostei bastante do texto, e às vezes eu também me pego pensando nessas coisas, em existir ou ser um nada comparado ao universo, que é tão imensamente grande rs. mas acho que a graça é essa, não é? não ter conhecimento de tudo que está a nossa volta. se nós tivessemos... a vida não seria tão interessante, believe me rs :3

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  2. Meu deus Lulu, que filosófica *-* eu adorei, e quantas foram às vezes que eu também questionei a realidade? E tudo no momento parece um sonho para mim. E cara, o que é real? Hahaha
    Refletir é tão, tão bom. Também me faz sentir diferente dos animais irracionais, que só vivem e aceitam tudo. Parabéns Lu, adorei

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  3. aaah obrigada gente *-* Por terem paciência de ler e comentar e tal rs. Amo vocês <3

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  4. Luísa, adorei esse texto e seu blog!
    Isso de uma certa forma me fez notar mais ainda como os humanos são limitados xD

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  5. isso dá angustia, ok? e apesar do vazio que realmente passa quando lemos pela primeira vez eu gostei (:

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